quinta-feira, 17 de julho de 2008

COELHOS MORTOS

por tiago spíndula


Estranhamente as almôndegas que comi ontem no jantar me retornaram à mente em forma de fezes... Meus pés nunca me foram amáveis, nem ao menos os conhecia, e agora me foram apresentados sob incômodas circunstâncias. Sangrando e ardendo em brasas sobre o sol replicante mortificado pelo sol de verão. Como odeio os pés, mas queria tê-los macios e protegidos, acariciados e envoltos em pele branca de coelho. Não a carcaça podre daquele coelho morto frito no asfalto em óleo diesel.

Litros de suor prendiam minha pele à roupa numa harmoniosa unicidade celestial: carne e panos unidos num só corpo. Como trilha sonora ouvimos as batidas frenéticas de um coração doentio e o arfar de um hálito cortante exalado por uma boca seca que insiste em permanecer aberta buscando inutilmente a umidade do ar que era de dezessete por cento como previsto no jornal. Uma interessante cena contemporânea aos olhos filosóficos d’algum velho excêntrico que se recosta na janela vazia de sua mente enquanto se regurgita fascinado pelo gigantesco mar de conhecimento estagnado por bolas de gordura solidificadas ao longo de excelentes anos sedentários; a cena, porém, não é nada recomendável à integridade física ou mental do protagonista pintado: eu, um hipocondríaco extremista e temeroso às punições divinas.

O dia começou como todos os dias começavam, numa pequena oração matinal, uma contagem regressiva para o fim da vida, uma tentativa de me livrar dos malcriados planos divinos. Abri os olhos e nada havia mudado, pedi perdão pelas palavras pronunciadas e engoli algumas cápsulas vermelhas, outras brancas e aquelas da caixinha preta.

Tomei café da manhã com cereais, ouvi Stravinsky e li os jornais. Beijei minha esposa com lábios lácteos e nos despedimos com lágrimas nos olhos. Apanhei minha criança no chão e a fiz voar pela última vez, me retribuiu com um sorriso pueril, beijei sua face e nos despediu com lágrimas nos olhos. Apanhei minha maleta no chão e zarpei para o trabalho.

Ninguém estava em casa. Bati palmas mais uma vez e chamei pelos moradores. Pensei ter visto alguns olhos através da janela, mas logo se ocultaram novamente. Desisti e fui para a próxima casa.

Era um ótimo trabalho, oito horas por dia debaixo de um sol de matar, batendo palmas e gritando “ó de casa”, simplesmente genial. Após anos de estudos miseráveis e uma pequena fortuna gasta em minha formação acadêmica não me seria ótimo zapts e crepts dos sóis crepitantes do meio dia? Ufa!. Meu nome é Jorge Santana, sou bacharel em direito pela universidade dos Cafundós do Judas, lá perto da Puta que o Pariu. Não vou dizer que sempre havia sonhado em ser advogado, juiz, ou coisa que o valha, só entrei nessa por causa de meu pai, não que o velho fosse um pedante sedento por uma prole fecunda nos artifícios das leis, não era isso, meu pai era lixeiro, e a única arte que conhecia era a de prender a respiração nos momentos de excessos fétidos. Formei-me com dificuldades, tanto financeiras quanto intelectuais, não gostava do curso e passava a maior parte do tempo num barzinho lá perto da faculdade. O dinheiro empregado valeu bem por causa das transas que consegui, mas por outro lado, eu bem que poderia ter pagado umas boas putas de luxo com a grana.

Os escovões que vendemos são de primeira qualidade, mas porra, quem é que compra escovão hoje em dia no Brasil? Isso não existe, só a empresa pra qual trabalho ainda não percebeu isso, ainda bem, porque senão, estaria desempregado. Pra mim não faz tanta diferença vender ou não vender, tenho um salário mensal fixo e ganho alguma coisa com comissões quando vendo algo, mas nunca vendo e logo o primeiro escalão deve perceber isso, portanto, devo ter mais um ou dois salários a usurpar, no máximo. Assim, no momento, ocupo o cargo de “Usurpador de Escovões”, não pagam lá muito bem, mas também não trabalho muito, só é chato a parte de ficar debaixo do sol e ficar gritando. Gritando não sei nem pra que, ninguém atende mesmo, hoje em dia todo mundo tem medo de pessoas que ficam gritando “ó de casa” em suas calçadas, pensam logo que é algum bêbedo ou ladrão, como se ladrões ficassem gritando pra avisar sua chegada. Um bêbedo até que é coerente, aliás, tudo é coerente quando se está embriagado.

Um corpo caiu ao meu lado na calçada, logo em seguida veio outro, sujei um pouco meus sapatos, apanhei um lenço no bolso e me abaixei para limpar, mas caiu outro corpo, decidi seguir em frente com os sapatos sujos. Uma criança com olhos melancólicos resolveu brincar com os mortos. Os intestinos expostos lhe pareceram um tanto estranho no início, mas logo achou engraçado as novas cores e experimentou um pouco do sangue que escorria pelo chão. O gosto acre do líquido se tornou doce nos lábios da criança e esta se rendeu aos prazeres subversivos do sangue e da carne, abandonando o sorvete que levara em sua mão.Deixei a criança desfrutar suas novas descobertas e gritei novamente “ó de casa”, outros olhos se ocultaram e vozes se calaram. De fato, não havia ninguém em casa.

Deus vem me perseguindo muito insistentemente nos últimos dias, típicas palavras idiotas e ameaças de morte e sei muito bem que ele não brinca em serviço e minha morte está marcada pra hoje à noite. Deveria ter gastado aquele dinheiro com putas de luxo. Noite após noite o mesmo sonho: Às dez horas da noite no local e dia marcados, hoje, o balaço que coloca termo em minha existência finalmente encontra minha cabeça. Sempre vem girando, cortando o ar em alta velocidade e me beija a testa num estalo. São sempre armas de pequeno porte, pistolas ou revólveres, e, nas várias vezes que morro, meus assassinos se pouco mostram com o corpo coberto pelas sombras de alguma parede, deixando à mostra apenas o brilho metálico que portam numa das mãos. Sei que é hoje, pois nos sonhos deus sempre aparece sorrindo e apontando pra um relógio digital marcando a data e hora exata, é mesmo um velho sacana. “... Ao cemitério” dizia enquanto aguardava pacientemente sua vez no ponto de ônibus, perto do beco de minha morte, “todos os ônibus levam ao cemitério”, dizia o velho sacana sorrindo pra mim e apontando pro relógio... Na verdade ninguém acredita em deus e ele está começando a ficar puto com isso, qualquer hora dessas... ainda bem que vou morrer hoje mesmo.
Bom, como dizia minha avó, voltemos aos sapos ensapatados, “ó de casa!”. Olhem só, tem alguém interessado nos meus escovões, olhem que deus não é tão safado quanto se pensa. Temos dos pequenos, dos grandes e dos obscenos, a senhora bem que tem cara de gostar de um obsceno, pois que seja então, são vinte pratas e o prazer é todo seu, use-o a seu bel prazer. Vinte pratas e não tenho putas de luxo com quem gastar.




tiago spíndula é professor da rede pública de planaltina df, músico e escreve nas horas vagas.

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