quinta-feira, 29 de maio de 2008

O HOMEM QUE MATOU DEUS

Fez-se a luz.
E o sol novamente viera lhe acordar com a lembrança firme da necessidade física.Tinha fome.E de novo o desespero de saber que a saciedade estava tão longe quanto as montanhas no horizonte tosco que sua vista debilitada já quase não alcançava. A linha de encontro com o céu dançava diante de seus olhos como a lhe dizer que Deus se divertia com sua situação. Deus não morreu. Se houvesse morrido seria de tédio, mas há vários miseráveis como ele no mundo para quebrar o marasmo divino. A sua música estomacal soava como uma orquestra desafinada ecoando por seu corpo magro enquanto em seu interior suas células se debatiam em uma luta canibal pela sobrevivência.
Levantou-se.
As pernas trêmulas como as de um novilho na hora da imolação. Foi até a caixa onde em outros tempos guardava o que havia para comer. Em meio ao mofo ainda restava um punhado de farinha e meia rapadura endurecida mais do que deveria. Mordeu um pedaço, sentindo a fraqueza óssea de seus poucos dentes e dirigiu-se para a latrina. Seus intestinos já não respeitavam as regras da boa educação. Evacuou um jorro intermitente de água e restos de si mesmo. Lá fora o silêncio habitual – nem os pássaros insistiam mais em ficar na sua morada de Jó. Enquanto se dirigia para a sua blasfêmia habitual notou algo que destoava das cores cinzas tão comuns ao seu redor. Um amarelo que cegava seus olhos como sarça se movia a poucos metros da situação em que se encontrava. Dirigiu-se à origem do movimento e chegou a duvidar do que lhe restava de sanidade: diante de seu nariz, faiscando aureamente se encontrava um pinto. Tão só quanto ele na imensidão do nada vermelho e seco do que antes fora chamado de Sítio Canaã, o que era agora afirmado apenas pelo balançar solitário e decrépito da placa na entrada de sua propriedade. Aproximou-se para resgatar seu novo companheiro. Sentiu um zumbido agudo no ouvido quando abaixou-se para pegar o frangote, enquanto que no céu as nuvens insistiam em escurecer-se de uma maneira rápida e incomum. Pegou a ave.
Trovejou. E uma voz reverberando disse-lhe : Eis meu filho único. Ele redimirá a humanidade.
Nisso as penas do achado se iluminaram de uma forma inusitada. Não aguentando se manter ereto sentiu o corpo pesar-lhe entortando-se sobre si mesmo. Acordou alguns minutos mais tarde, sem saber se o que ouvira era fruto de sua fome ou o vento vociferando, como a lhe exigir que fosse embora para o sul como os outros. Uma coisa era fato: o pinto existia e estava a alguns metros de seu rosto, ciscando a terra acinzentada e estéril, na esperança de algum inseto. Tomou-o nas mãos, perguntando-se como aquilo poderia ter chegado até ali, numa imensidão de nada, morte e cinza, num local do qual nem deus se lembrava. Um nome. O bicho precisava de um nome, era a única companhia na sua funesta espera. Deus. Isso mesmo. Tinha aparecido milagrosamente, do nada e num local que até os céus se envergonhavam quando passavam lá no alto.
O sol nascia e se punha mais rapidamente com a companhia de Deus, agora já um belo frango, preto e branco, que sobrevivia tão misteriosamente como apareceu. Já a sua rotina de dores estomacais, de mastigar o couro dos restos de botas, de se frustrar procurando sisal ou um calango era amenizada pela música divina, pela graça divina de ver aquele ser tão infímo e tão poderoso que lhe dera vida nova, lhe ajudava a resistir. Conversava horas com Deus, falava-lhe de seus problemas, da farinha e da rapadura que acabavam, da sua enorme vontade de viver agora. E suas glândulas lacrimais se entumesciam, pondo para fora o pouco de sais minerais que ainda em seu corpo havia. E se emocionava se convulsionando, clamando uma solução a Deus.
E assim passavam as horas e também os dias, com os astros em suas rotações, tediosamente condenados, e ele adormecia após essas orações, em um sono profundo e cheio de sonhos desconexos. Em um destes, uma voz lhe dizia: “Meu filho, eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim”, mas ao acordar o que lhe ressoava – entre a trompa de Eustáquio e a ossatura da bisnaga, quase estourando seus tímpanos – era a palavra “vida”. Foi procurar lenha, preparou uma fogueira, com uma espécie de girau por cima e perdeu-se em uma procura existencial: uma panela. Num esforço sobre-humano sobe na cadeira e apanha uma caçarola cansada de esperar para tornar a ter utilidade, dependurada no alpendre. E o grande sacrifício se fez. Temperado com lágrimas ele se alimentou da carne divina e todo seu corpo se regozijou, suas células eufóricas digerindo, a osmose transmitindo vida, uma a uma, pouco a pouco. Terminando dormiu, com suor na testa e um sorriso no maxilar.
Digestão feita, acordou-se e procurou um lugar mais digno do que a latrina - um monstro com sua boca cariada escancarada – para responder à natureza que clamava, pois com todo seu corpo renovado queria também uma renovação em tudo. Achou seu átrio digestivo nas raízes de uma grande figueira, que como tudo mais naquele lugar, jazia sem vida. Levantou-se, feliz por não ter sentido cólicas e foi dar continuidade ao seu trabalho diário de procurar algo para comer amanhã.
Hoje, um céu estroboscopicamente azul, dois calangos teús, quatro raízes de mama-cadela, e a satisfação de encontrar algo naquela terra que parecia ainda não ter de tudo morrido. Três dias se foram desde a morte de seu companheiro e se distraía caminhando, observando os cinzas e os vermelhos ao seu redor, até um verde destoar da paleta do ambiente: uma muda se erguia incólume do monte de fezes que ele depositara ao pé da figueira e ao longe um trovão ribombava, evidenciando que uma nuvem encontrara outra e dessa cópula surgia a promessa de vida.


Roger c. lopes


planaltina -df,
junho de 2005


Nenhum comentário: